Quantas vezes já te cruzas-te com transsexuais?
Quantas vezes lhes olhas-te nos olhos sem desvendares os seus segredos, sem atinares com a origem da magia em seus olhares? Sem pores em causa que o João se calhar até é a Maria.
Por quantos já te apaixonaste, na ignorância da sua condição específica?
Desejava-los, que mudou depois de saberes?
Deixaste de amá-los? Não.
O que mudou foi a tomada de consciência do que isso significa. O medo.
Então, o que está aqui em causa não é o amor puro e simples, tão pouco uma determinada anatomia e sim, o peso do preconceito, da ignorância e as suas nefastas consequências.
Sabem quando é que os americanos comeram carne pela primeira vez?
Foi quando lá chegou o Cristóvão co lombo.
Cada homem tem um continente de carácter por descobrir.
Feliz daquele que age como Colombo da própria alma.
Há uns tempos atrás, antes das pessoas saberem da minha condição específica, enviaram-me um e-mail que visava uma intervenção cirúrgica de redesignação sexual MtF.
Acompanhava essa mensagem o comentário seguinte: "É arrepiante. Epá, porque é que as pessoas não se deixam estar como Deus as fez?"
Concordo, arrepia.
Para mim, qualquer situação que envolva o corte da carne é arrepiante. Uma "simples" operação ao joelho, é arrepiante; sacar fora parte do estômago ou fígado, é arrepiante.
Quando o bisturi começa a cortar a pele, passa pelas células adiposas e rasga o tecido esponjoso; quando chega ao músculo e presencia-se à dilaceração das carnes; quando se vê o osso; quando se desnudam os órgãos internos; para mim, pessoalmente, tudo isso é arrepiante, é uma agressão, é de pôr os cabelos em pé.
No entanto, as pessoas não deixam de se submeter a um número sem fim de intervenções cirúrgicas só porque é arrepiante ou só porque é feio, independentemente daquilo que as move, sejam motivos de saúde, sejam questões de beleza.
Quanta gente não se submete a cirúrgias de estética e, no entanto, as pessoas ficam horríveis, todas negras e inchadas; mas, depois passa. As carnes voltam a unir-se, a readquirir firmeza; as células fundem-se novamente. Em muitos casos, passado um tempo, nem se reconhece ter havido qualquer intervenção humana.
Se formos a dar crédito à indignação que leva à expressão atrás, eu questionaria - porque toda a gente não fica como está? Se tem um defeito físico, que pode ser sanado por uma ajuda externa da medicina e melhorar a autoestima, deve ficar como Deus o/a fez. Se tem um câncro, por exemplo, não tem que buscar qualidade de vida e deve ficar como Deus o/a fez. Certo? Errado.
Isso é mentalidade mesquinha e ignorante. Já disse Freehill: Quem é mais insensato? A criança que tem medo do escuro, ou o homem que tem medo da Luz?
Tudo o que existe é Obra Divina, já diz o velho ditado: Pela Obra se conhece o Criador; tanto a Religião como a Ciência, propriamente dita, são filhos do mesmo "ventre", diferentes mas que se complementam. Uma equilibra uma parte do Ser, a outra equilíbra a sua metade.
Todo este processo a que se submetem os T's, visa buscar o seu bem estar emocional, psíquico e até físico. Visa ir ao encontro da sua real identidade.
Todos nós, sem excepção, necessitamos de saber e fazer saber quem somos, na íntegra. A individualidade é algo sagrado para todos nós. Só mesmo quem nunca se viu privado dela consegue ter estes achaques infelizes.
Sou um Ser pacato, privo-me muito de agredir quem seja e de que forma for, mas, haja paciência. Chega a um ponto que ninguém aguenta.
Estes últimos tempos têm sido algo dificeis para mim.
Uma luta interna constante para me manter à tona.
Não me tem apetecido escrever, fazer nada.
Chego a casa cansado. Cansado do trabalho, cansado do ambiente, cansado da hipócrisia, cansado das futilidades, cansado das banalidades. Cansado de pequenas situações que, para quem já está cansado, assumem a forma dos moinhos de vento de Dom Quichote.
Estou cansado desta vida, desta espera.
Uma pessoa passa meses a construir uma relação confortável - no meu caso com os utentes -, em que assume a sua verdadeira personalidade, constrói, mantém, para, de um momento para o outro, em poucos minutos, vir um colega que põe por terra tanto empenho, tanto cuidado.
Por vezes sinto-me tão revoltado que me apetece desistir de tudo e de todos.
Pergunto-me até quando. Até quando vou precisar de despender energia preciosa para manter o equilíbrio, aguardando o tão esperado dia...